O planejamento sucessório e as limitações às holdings e trusts familiares no direito brasileiro

Desde logo cumpre esclarecer e pormenorizar o planejamento sucessório e as ferramentas expressamente disponíveis que o possibilitam.

Sobre o planejamento, Rolf Madaleno prescreve que várias são as medidas que podem ser utilizadas para tal, que se complementam e auxiliam para atingir o caminho mais adequado para a sucessão patrimonial de um indivíduo, até onde é possível.[1]

A utilização dessas ferramentas visa permitir às pessoas “preverem quem, quando e como e com quais propósitos serão utilizados os bens destinados aos seus herdeiros legítimos e testamentários, reduzindo conflitos, fortalecendo vínculos […]”[2].

Em relação à redução de conflitos o planejamento sucessório pode atingir facilmente seu intento, considerando a possibilidade de fixar absolutamente, em vida, o destino do patrimônio que ao longo da vida um indivíduo amealhou.

Em relação aos limites tem-se os ensinamentos do Ilustre Flávio Tartuce que esclarece que a primeira “regra de ouro” do planejamento sucessório, é a da proteção da quota dos herdeiros necessários e que corresponde a cinquenta por cento do patrimônio do autor da herança, previsto no art. 1.846 do Código Civil.[3]

Já a segunda regra que deve ser obrigatoriamente observada é a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina

retirada do art. 426 do Código Civil em vigor, segundo o qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. A hipótese é de nulidade absoluta virtual, situada na segunda parte do art. 166, inc. VII, da própria codificação privada, uma vez que a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção.[4]

Assim, as ferramentas que são consideradas parte de planejamento sucessório são exploradas nos tópicos seguintes, apenas do ponto de vista finalístico:

  1. Doações conjugais

Segundo o autor supracitado, as doações com as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade caracterizam importante instrumento sucessório, na exata medida em que o doador ao cônjuge pode se utilizar de uma dessas cláusulas para impedir que o cônjuge de seu herdeiro venha futuramente a partilhar o bem doado, se casado no regime da comunhão universal de bens.

Já as doações interconjugais existiam na época quando os cônjuges não eram herdeiros necessários um do outro, no código anterior, o que acabou por perder razão nos atuais delineamentos do planejamento sucessório.

  • Doações com cláusula de reversão

As doações com cláusula de reversão são aquelas em que o doador expressamente indica que caso o donatário venha falecer antes dele, o bem doado retorna à esfera patrimonial do doador, novamente, para que o bem não caia em mãos de quem o doador não possui interesse de se tornar o proprietário, principalmente, um cônjuge.

Com tal medida o doador, que é quem realiza o planejamento sucessório, tem mais controle sobre a propriedade dos bens que deixará em vida, até o momento de sua morte, ainda que tenha se precavido com a doação anterior a ela.

A cláusula de reversão está expressamente prevista no art. 547 do Código Civil, in verbis: “Art. 547. O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário.”

Tais estipulações, na prática, ocorrem sobre bens imóveis.

  • Doação com reserva de usufruto

Já na doação com reserva de usufruto, o doador efetivamente doa seu bem a terceiro e reserva a si o usufruto vitalício do bem, isto é, pode usá-lo e frui-lo como bem entende, inclusive alugando e cedendo em comodato, entregando apenas a nua propriedade ao donatário. Sobrevindo a morte do usufrutuário o donatário consolida a propriedade do bem, obtendo, assim, a propriedade integral, como se sucessão fosse.

Rolf Madaleno indica que isso pode ser feito tanto com bens imóveis quanto a bens móveis, em relação a quotas sociais, em que, neste último há a possibilidade de reserva do direito de administração, tudo com o objetivo de antever o destino dos bens amealhados em vida.

Sobre o tema regra importante há no Código Civil, consolidando o instituto como parte de planejamento sucessório, pois, veja-se: “Art. 1.393. Não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso.”

  • Adiantamento de legítima

O adiantamento de legítima nada mais é do que a doação a herdeiro necessário da parte que já lhe caberá por ocasião da partilha de bens decorrentes da morte do doador, adiantando a legítima, isto é, a parte indisponível do patrimônio.

  • Pacto antenupcial e regimes de bens de casamento

O pacto antenupcial, que deve ser feito por escritura pública antes do casamento, definirá o regime de bens das pessoas casadas e a forma que irá se pautar a aquisição de bens das pessoas casadas, podendo identificar os mínimos detalhes no que toca ao patrimônio durante a sociedade conjugal.

Sendo assim, pode-se fazer cláusulas específicas em relação à comunicabilidade dos bens, o que, claramente servirá a quem planeja sua sucessão a antever o destino dos bens.

  • Planos de previdência privada e seguro de vida

Em razão do disposto no artigo 794 do Código Civil, que considera que o seguro de pessoas não está sujeito a dívidas do segurado e nem é considerado herança, pode o segurado contratar essa modalidade com o intuito de direcionar capital a determinada pessoa, sendo ela herdeira ou não.

De fato, a questão posta nem mesmo sucessão seria, pois se o seguro não é herança, caracteriza apenas, efeito patrimonial causa mortis, o que no fim das contas atinge o objetivo de quem pretende planejar o destino do patrimônio após a sua morte.

  • Testamento

O testamento, em tese, seria o instrumento principal de planejamento sucessório, pois visa, exatamente, realizar a divisão e destino dos bens amealhados em vida pelo testador.

Ocorre que, em face das limitações impostas pelo legislador, tal instrumento acaba não atingindo seu objetivo e limita as opções do testador, desta feita para uma melhor utilização do testamento, Rolf Madaleno indica a necessidade de utilizar as outras medidas de planejamento para atingir o objetivo almejado.

  • Deliberação sobre partilha

O artigo 2.014 do Código Civil autoriza ao testador que indique bens e valores que devem compor os quinhões hereditários, observando as quotas que a lei impõe. Essa partilha, realizada em testamento, possibilita a distribuição apropriada da herança, como por exemplo “pagar herdeiros com a partição da moradia familiar”, no caso ao cônjuge sobrevivente, sem que este tenha que dividir com outros herdeiros a sua propriedade, e da mesma maneira podendo partilha bens imóveis a filhos com diferentes profissões.

  1. Partilha em vida

Já no artigo 2.018 do Código Civil, há a previsão não tão conhecida da “partilha em vida”, que constitui modo de doação que somente será levada a efeito após a sua morte.

Assim, veja-se, in verbis o quanto indicado pelo artigo do diploma legal estudado: “Art. 2.018. É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários.”

Impõe observar o respeito absoluto à regra de ouro do respeito à legítima dos herdeiros necessários.

  • Trust

O trust se trata de instituto de direito estrangeiro, isto é, do sistema Common Law, de origem anglo-saxônica[5] e é ferramenta de separação patrimonial. O instituto é de difícil definição abstrata uma vez que pode se revestir de mais de uma estrutura e promover múltiplas funções, se tratando de ferramenta extremamente versátil. Porém, no direito brasileiro não é aplicável[6].

Segundo Gustavo Tepedino, “o trust não encontra previsão nos ordenamentos de família romano-germânica [o civil law adotado no brasil], o que dificulta sua qualificação para fins de determinação da lei aplicável”[7]

Por fim, a Convenção de Haia, do qual o Brasil não é signatário indica que o trust  “se refere a relações jurídicas criadas – inter vivos ou após a morte – por alguém, o outorgante, quando os bens forem colocados sob controle de um curador para o benefício de um beneficiário ou para alguma finalidade específica”.[8]

Rolf Madaleno, sobre a trust é mais esclarecedor:

No  trust, o instituidor (settlor) busca alguém que cuide ou administre seus bens (o trustee), para quem ele transfere os seus ativos, ficando o administrador ou administradores (trustees) encarregados de gerirem o patrimônio em benefício do  instituidor  ou  dos  cestuis  que  trust  ou  beneficiários  por  ele  indicados.  O trust não é uma empresa e tampouco possui personalidade jurídica, mas surge da transferência dos bens do settlor para uma ou várias pessoas físicas ou jurídicas encarregadas de administrá-los.

  • Fideicomisso

Para Rolf Madaleno, o fideicomisso se trata de figura jurídica alternativa ao trust, pelo qual “uma pessoa (fiduciante), transfere a propriedade de certos bens para outra (fiduciário), que se obriga a dar determinada destinação a esses bens em proveito do próprio fiduciante, ou de um terceiro (beneficiário).

O fideicomisso no direito brasileiro é previsto em disposição testamentária para cumprimento de um encargo pelo fiduciário, ainda que a propriedade dos bens seja dos herdeiros. Mas ressalve-se que o fideicomisso pode ser feito independentemente da morte ou de disposição testamentária, pois pode prever a incapacidade do fiduciante ou sua ausência, transferindo o destino, ainda que transitório ao fiduciário.

Com vistas a obter melhor as qualidades do fideicomisso no panorama da sucessão, veja-se o quanto indica Maria Helena Diniz, pois, veja-se:

“A substituição fideicomissária consiste na instituição de herdeiro ou legatário, designado fiduciário, com a obrigação de, por sua morte, acerto tempo ou por condição preestabelecida, transmitir a outra pessoa, chamada fideicomissário, a herança ou legado. Se incidir o fideicomisso em bens determinados, ter-se-á fideicomisso particular, e se assumir o aspecto de uma herança, abrangendo a totalidade ou uma quota parte do espólio, será fideicomisso universal.[9]

  • Sucessão da pessoa jurídica por Holding

Desde logo, Rolf Madaleno indica que a transmissão hereditária de quotas sociais para herdeiros é possibilitada pelo nosso Código Civil, autorizando que os herdeiros de sócios possam ingressar na sociedade através de cláusula específica, e que isso em nada vulnera a proibição do art. 426 do referido diploma legal, qual seja, do pacta corvina.

Nesse diapasão, o que é realizado no caso são as holdings familiares e patrimoniais com a transferência de todos os ativos para a esfera patrimonial dessas pessoas jurídicas, inclusive as quotas das diversas empresas que podem possuir os instituidores, para facilitar a sucessão, a administração e o pagamento de impostos, sem contudo possibilitar a lesão a herdeiros necessários.

Nesse sentido claramente dispõe Flávio Tartuce que a instituição de pessoas jurídicas para gerir patrimônio após a morte é nulo, pois, veja-se:

Discordamos, com o devido respeito, uma vez que, como têm sido estabelecidos no Brasil, tais negócios jurídicos são claramente nulos. Se são muitos, então temos uma realidade em que a nulidade absoluta acabou por ser propagada de forma continuada em nosso País, sob o manto do planejamento sucessório. Se há uma sociedade – que tem natureza contratual –, instituída com o objetivo de administrar os bens de alguém ou de uma família e de dividir esses mesmos bens em caso de falecimento, a afronta ao art. 426 do Código Civil é clara e cristalina.

Diante todas as medidas de planejamento sucessório, tem-se, desde logo a ideia de que qualquer instrumento que se utilize, o planejador e os herdeiros possuem grande limitação no que tange às regras de ouro impostas pela nossa legislação, quais sejam, da limitação da legítima aos herdeiros necessários e da interpretação dada ao pacta corvina.

De uma forma ou de outra, tem-se na prática, a possibilidade de contestar judicialmente qualquer ato em vida de indivíduo que pretenda desrespeitar essas regras impostas, o que não seria salutar na exata medida em que nossos tribunais já estão abarrotados de lides judiciais, considerando, mais que os processos que envolvem direitos sucessórios, por muitas vezes, se arrastam por longos anos na justiça.

Destarte é possível vislumbrar que quem planeja o destino de seus bens em sua sucessão possa utilizar diversas ferramentas para obter a máxima efetividade de sua vontade com o respeito às regras impostas pelo Código Civil.

Ademais, é de se constatar também que as medidas utilizadas possuem vultosas custas, ou seja, são direcionadas aqueles que possuem muito patrimônio e muitos herdeiros para partilhar, e exatamente por isso, a questão já se mostra deveras complexas, em face até mesmo da variedade de natureza dos bens objeto de planejamento sucessório.

Grande questão se coloca no que toca às sociedades e às quotas sociais, principalmente na validade de disposições estatutárias e de controle de patrimônio através de holdings. Conforme se viu, há entendimentos da completa possibilidade de tais disposições de patrimônio em favor de pessoas jurídicas para que possam controlar a sucessão do indivíduo e há corrente em sentido contrário indicando a impossibilidade, sob pena de infringência do pacta corvina e da doação de todos os bens de pessoa sem reserva do necessário para viver.

Sobre tal questão, posiciona-se em favor de tais disposições, na exata medida em que há possibilidade de transferência a pessoa jurídica de todo um patrimônio, restando o instituidor com apenas as quotas sociais com valor compatível ao seu patrimônio, desde que todos seus herdeiros necessários sejam sócios quotistas, com respeito à legítima, pois, do contrário haveria o abuso da personalidade jurídica do ente abstrato para alcançar patente objetivo ilegal.

Assim, conclui-se que não há escapatória aos instituidores que pretendem lesar herdeiros, uma vez que a lei reserva aos necessários 50% do patrimônio.


[1] MADALENO, Rolf. PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO. Anais do IX Congresso Brasileiro de Direito de Família, Porto Alegre/RS, p. 189-214, 1 dez. 2017. IX Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2017, Gramado/RS. p. 218.

[2] Ibidem. p. 216.

[3] TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório: O que é isso? – Parte I. Migalhas, São Paulo/SP, p. 1-1, 31 dez. 2018. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI290190,101048-Planejamento+sucessorio+O+que+e+isso+Parte+I. Acesso em: 19 set. 2019.

[4] TARTUCE, Flávio. Op. cit. Loc. cit.

[5] TEIXEIRA, Danielle Chaves. Planejamento sucessório: Pressupostos e limites. 2ª. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 245 p. ISBN 978-85-450-0600-8.

[6] Idem.

[7] TEPEDINO, Gustavo. Direito de preferência previsto em estatuto societário e o direito das sucessões. Soluções práticas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 510, v. 2).

[8] ABREU, Jorge de. A Natureza Jurídica do “Trust”, Planificação Fiscal e Âmbito Sucessório, disponível em:http://www.amsa.pt/xms/files/A_Natureza_Juridica_do_TRUST_Planificacao_Fiscal_e_Ambito_Sucessorio.pdf.

[9] DINIZ, Maria Helena, Curso de direito civil brasileiro – Direito das sucessões. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.6 vol.